Nesse tempo em a que a informação vem torrencialmente sobre nós, com computadores de todos os tamanhos acelerando nossas vidas, é muito comum encontrar as mais variadas visões e formas de se ver a vida e o mundo. Contudo, mesmo com essas inúmeras opções, parece que somos destinados a alguma padronização, variação do mesmo tema, com cópias idênticas a nós mesmos aqui e ali, iguais nas diferenças.
No Aikido não é diferente, são muitas escolas, possibilidades e visões, onde é possível se perder nesse entroncamento de informação. Nesse contexto, possivelmente algum praticante deve ter se questionado sobre qual caminho deve seguir, qual seria seu Do, onde encontrar seus pares, “parceiros no lote”.
Dispomos de vídeos com técnicas apuradas, dispostas passo-a-passo com detalhes “em close“, mostrando “segredos” e possibilidades mil. Aulas a distância com mestres renomados, com definição e imagem em alta resolução, as vezes mais possíveis de captar que pessoalmente. Parece que o caminho do Aikido está pavimentado e sinalizado para rodar em alta velocidade. Porém, nesse caminho tem encruzilhadas, pois existe algo além da aparência técnica, como sua aplicação nas escolhas a tomar. A sensibilidade na tomada de decisão requer o uso combinado da inteligência e sentimento. Não há Aiki sem sentimento, esse intangível que nos separa das máquinas e que tentamos muitas vezes inutilmente definir. Albert Einstein escreveu:
“Os computadores são incrivelmente rápidos, precisos e burros. Homens são incrivelmente lentos, imprecisos e brilhantes. Juntos, seus poderes ultrapassam o limite da imaginação”.
Existem inúmeros opções e métodos disponíveis, levando uma busca frenética pelo melhor, mais rápido, mais espiritual. Essa busca por uma certeza duradoura faz com que muitos aikidoístas transitem de grupo em grupo, com expectativas irreais, estragando a beleza do primeiro amor, levando, como diria o cantor e compositor Cartola na canção “O mundo é um moinho”.
“Mal começastes a conhecer a vida, já anuncias a hora de partida sem saber mesmo o rumo que irás tomar… Preste atenção, de cada amor tu herdarás só o cinismo, quando notares estás a beira do abismo, abismo que cavastes com teus pés”.
Essa problemática muitas vezes está na figura do professor de Aikido, pois as exigências para o mesmo ficaram extremadas quanto a técnica, postura e realizações. É preciso estar na “crista da onda” para aguentar o escrutínio de alunos tão exigentes e mal-informados, portando lentes de aumento, instrumentos que ainda não sabem usar. Esses alunos em alguns anos também viram professores e montam grupos que também possuem suas lentes, desta vez mais distorcidas, alimentando um ciclo vicioso de certezas deturpadas. Às vezes, tentam-se recriar uma espécie de sistema feudal na tentativa de reprimir questionamentos, indo na contramão do tempo, criando um isolamento que não passa de uma bolha imaginária.
O problema parece insolúvel, já que se isolar, como nas escolas da antiguidade, parece não funcionar no mundo do século XXI, muito menos a volubilidade que a vida moderna displicentemente nos permite.
O tempo está aplicando ao Aikido um duro desafio à sobrevivência de seus valores, sofrendo muitas vezes de um revisionismo histórico que, numa análise fria, não apresenta nenhum valar à manutenção das bases que a consagraram como uma arte marcial voltada para tempos de relativa paz.
O que procuro defender não é uma solução definitiva, mas sim uma atitude mais aberta quando ao que enxergamos, admitindo que, por termos uma visão defeituosa, não devemos confiar nas nossas lentes, pois há uma chance de distorcermos a realidade. Deve ser adotada simples atitudes de verificação, para que o caminho se mostre mais claramente e seja atenuada as dúvidas. Não abordo o problema da escolha de onde e com quem começar a treinar, nem questões sobre a eficiência do Aikido quanto arte, mas sim a manutenção do treino para alunos mais avançados e que já ultrapassaram a barreira que é iniciar a treinar.
Não há competição no Aikido, por isso tenha compaixão pelo seu professor, isso pode parecer estranho pois ele é o modelo, o mestre, a força motriz do dojo, porém ele é uma pessoa, com dúvidas, problemas e incertezas. Nem todas as respostas serão dadas por ele e você terá que buscar sozinho. Isso pode fazer com que alguns achem que ultrapassaram tecnicamente seu mestre (o que raramente é verdade), se afastando do grupo para procurar “algo melhor”. Contudo, dificilmente há esse “algo melhor”, só pessoas fazendo coisas levemente diferentes. É possível tentar algo diferente, mas não é preciso esquecer de onde você começou e desprezar seu passado. Desenvolva, aprenda coisas novas, mas procure sempre voltar as raízes, isso revigorará suas forças e também fará seu professor feliz.
Tenha parcimônia em defender sua forma de treinar. Cada um tem seus gostos e vontades e discutir qual é melhor pode ser uma perda de tempo (e amigos). É comum, até mesmo dentro de um mesmo grupo, o questionamento quanto a efetividade de fazer uma técnica daquela ou desta forma. Defender abertamente sua visão, diminuindo outras, só cria antipatia, já que dificilmente chegará a um denominador comum, pois a chance de testar na prática, contra um adversário real é muito remota e indesejada. O estudo do movimento e sua marcialidade está mais para academia do que para a vida real. No fundo as aplicações das técnicas do Aikido estarão mais presentes em outros conflitos, muitas vezes mais intelectuais do que marciais, seja o praticante um profissional de segurança, acadêmico ou intelectual. Isso leva ao terceiro passo.
Tem mais Aikido no dia a dia do que pensamos. Diariamente precisamos resolver algum conflito, seja interno ou envolvendo outras pessoas, sendo que esse conflito é raramente físico – o que é mais que desejável – e muito mais intelectual. Manter uma postura adequada nos ajuda nesse processo. Saber onde entrar em irimi ou fazer tenkan numa relação de trabalho ou com a família é tão, ou mais, necessário quanto se exige no dojo. As variações existem, vale a pena conhecer, mas precisamos ter um sentimento adequado para aplicar no cotidiano. E mais importante ter um espírito calmo do que estar aflito para desenvolver a técnica perfeita.
Ser resiliente tem muito mais a ver com se levantar depois de perder uma batalha: E você perderá muitas, pois raramente um aikidoísta tem medo de enfrentar as dificuldades. A nossa vida exige mais de quem pode mais, sendo que muitas vezes seremos derrotados. Saber cair é algo inerente ao treino de aikido. Para ser um bom uke precisamos nos proteger, ouvimos desde o primeiro dia de treino, e mesmo tendo aqueles que fazem quedas espetaculares, não quer dizer que todos precisam fazer igual para atingir o objetivo. Os verdadeiros bastiões da história não são aqueles que venceram batalhas. Victor Hugo em Os Miseráreis, escreveu sobre a batalha de Waterloo, uma das mais importantes da história da humanidade:
“…Nem a Alemanha nem a Inglaterra, nem a França tiram sua grandeza da bainha da espada… Seu peso específico no gênero humano resulta de algo mais que um simples combate. Sua honra, graças a Deus, sua dignidade, sua luz, seu gênio, não são números que esses jogadores, heróis e os conquistadores, possam arriscar na loteria das batalhas, Quase sempre, batalha perdida é progresso adquirido. Menos glória e mais liberdade. Os tambores se calam e a razão toma a palavra. É um jogo de perde-ganha.”
Percebam que nos quatro passos não existem componentes especiais para a técnica e sim uma percepção sincera do aikido. Os vídeos e seminários podem despertar alguns aspectos, mas a convivência com seus colegas de treino é que enriquecerá o conhecimento. Ter empatia pelo professor e colegas de treino é condição sine qua non para desenvolver um espírito forte e sobreviver nesse mundo moderno.
Não existe técnica mágica ou secreta que te dará as ferramentas necessárias, ou que sobreviva ao escrutínio de praticantes ávidos e exigentes. Entender nossa cegueira quanto a muitos aspectos da vida abre as opções para experimentações sem perder as raízes que nos firmam na arte.
Com o tempo, é possível que o caminho seja menos povoado do que no início, mas àqueles que seguem em sintonia com o sentimento sincero, terá sempre onde encontrar abrigo e verá as luzes que permitem enxergar mais claramente a melhor direção a seguir, sempre contando com aqueles que lhe são queridos, e o tempo só será um aliado nessa campanha.
Não existe um novo Aikido, o que é de novo acontece nas transformações que a arte faz internamente em cada praticante, a cada ano mais íntimo, mostrando a cada dia a genialidade de seu inventor, Mohirei Ueshiba, moldando algo que é pura arte, bela e atemporal.
Texto elaborado por Felipe Cristiano da Silva Leite para seu exame de shodan em outubro de 2016
Entrega de certificado de Shodan pelo Professor Valdenberg ao seu aluno Felipe Leite